Profissionais de Saúde: Contexto Laboral

 

 

 

Lucas Vieira de L. SILVA

José Genivaldo PARENTE

 

Profissionais de Saúde e Seu Contexto Laboral

 

 

 

 

 

Resumo

 

Este estudo pretendeu demonstrar o contexto da saúde no Brasil, através de uma revisão da literatura, de forma a tentar uma compreensão dos rumos que esta tem tomado, ao longo dos anos e os conseqüentes impactos nas atividades de alguns de seus profissionais. Observou-se um ritmo de trabalho, muitas vezes sem descanso adequado, principalmente no caso de médicos e enfermeiros, onde os profissionais acabam dormindo mal e alimentando-se mal, trabalhando muito e ganhando pouco. Esta constatação acaba contrastando com a necessidade de atender as representações sociais que se tem destas categorias profissionais. O presente estudo dá ênfase ao trabalho do médico. Não se pretendeu esgotar o tema ou contemplar todas as profissões relativas à saúde, que parecem crescer a cada dia com a criação e/ou reconhecimento de novas categorias (por exemplo, optometrista, radiologista).

 

Palavras-Chave: Saúde, profissionais de Saúde, Contexto laboral

 

 

 

 

Introdução

 

            Este estudo objetivou contextualizar a saúde no Brasil, permitindo compreender os rumos que esta tem tomado, alguns dos problemas inerentes, soluções propostas e condições que têm caracterizado as atividades de alguns de seus profissionais. Não se pretende esgotar o tema ou contemplar todas as profissões relativas à saúde, que parecem crescer a cada dia com a criação e/ou reconhecimento de novas categorias (por exemplo, optometrista, radiologista). A ênfase principal é na profissão médica. Porém, com o propósito de compreendê-la melhor, ter-se-ão em conta duas outras categorias: enfermeiros e psicólogos. O primeiro grupo participa regularmente do que, provavelmente, representou a maior revolução no âmbito da saúde nos últimos anos: o Programa de Saúde Familiar (PSF), e o último tem participação esporádica em tal programa, mas com pretensão evidente de passar a formar parte. Confia-se que a situação laboral dos médicos possa se fazer mais evidente quando contrastada com a destes dois grupos de profissionais.

O interesse em se estudar a saúde de profissionais de saúde passa, inicialmente, por uma compreensão de como funciona a saúde pública no Brasil, principal setor onde os médicos exercem seu ofício neste país, que ocupa 69,7% deles (Carneiro & Gouveia, 2004). Esta preocupação tem sido crescente, pois está associada com a polêmica em torno das mudanças recentes no mundo do trabalho e de transformações socioeconômicas e tecnológicas atuais que a influenciam diretamente. Contudo, os profissionais interessados no tema têm assumido uma concepção de saúde pública ainda muito focada no aspecto epidemiológico (presença de doenças). Neste contexto, se os critérios de explicação e de intervenção no campo da Medicina, por exemplo, ainda estão centrados na doença e não na promoção da saúde, compreendida também em termos subjetivos, as possibilidades de se lançar um olhar mais complexo torna-se desafiadora.

            Felizmente, de acordo com Pouvourville (1999), a tendência em pensar a saúde em termos estritamente biológicos ou orgânicos, como ausência de quadros doentios, vem mudando nos últimos anos. Portanto, vem-se priorizando trabalhar a pesquisa em saúde pública a partir de uma perspectiva mais abrangente, que inclui elementos da subjetividade humana, admitindo implicações no bem-estar subjetivo de seus promotores e usuários. Esta perspectiva é aqui admitida, pensando-se a saúde como um contexto concreto do exercício profissional, estendendo sua avaliação para o campo da subjetividade, entendida como elementos de bem-estar subjetivo e experiências de esgotamento profissional. Porém, antes de tratar estes aspectos, considera-se o cenário da saúde neste país, começando com o contexto histórico que o precedeu.

Breve História da Saúde

            Nesta oportunidade, toma-se como referência principal a obra de Rosen (1994). Nela se oferece uma retrospectiva histórica da saúde. Inicialmente, indica-se que sempre houve uma preocupação da humanidade com doenças que poderiam ser disseminadas por meio de contágio. Concomitantemente, foi-se reconhecendo a necessidade de melhoria de elementos contextuais que poderiam afetar a saúde, a exemplo de ambiente físico, saneamento, água e alimentação limpas e em volume suficiente, assim como uma preocupação com o alívio das incapacidades e do desamparo.

            Na Idade Moderna, os avanços relacionados com as descrições das doenças e suas etiologias, além de estudos epidemiológicos, permitiram maior avanço do Estado como provedor de cuidados, com o controle de infecções e medidas que mantivessem estável a saúde dos trabalhadores. Porém, os processos de industrialização e urbanização decorrentes da Revolução Industrial, ocorrida na Europa na segunda metade do século XIX, aumentaram os problemas de saneamento, acentuando os problemas de saúde das pessoas. As condições de vida precárias geradas pela aglomeração de camponeses migrantes na busca de trabalho, pelo surgimento de cortiços insalubres e a falta de higiene pioraram a incidência de enfermidades infecto-contagiosas, aumentando a mortalidade nos centros urbanos (Rosen, 1994).

            A mortalidade dos trabalhadores prejudicava o funcionamento das indústrias à medida que diminuía sua produção. Desse modo, o governo passou a ser pressionado no sentido de prover medidas preventivas que incluíssem a melhoria nas condições de saneamento e educação sobre hábitos de higiene para a população. Nesse marco, os movimentos sociais favoreceram os primeiros princípios de ação comunitária em saúde pública. Este se consolida com o ato de saúde pública, em 1875, na Inglaterra, como uma das primeiras medidas no sentido de diminuir a pobreza e melhorar as condições de vida da população. O Estado passou então a assumir a responsabilidade pela organização da saúde, devendo prover os cuidados necessários para a sua manutenção.

            Ainda segundo Rosen (1994), por essa época e até o final do século XIX havia ao menos três paradigmas acerca do processo saúde-doença, que seguem influenciando o desenvolvimento da saúde pública até os dias de hoje. O primeiro afirmava que as doenças eram causadas por emanações de animais e plantas em decomposição (corrente miasmática); o segundo levava em conta que as condições insalubres das casas e fábricas eram as responsáveis pelo aparecimento das doenças (determinismo social); e, finalmente, o terceiro paradigma apareceu a partir das descobertas de Pasteur e Koch sobre as bactérias causadoras de diversas enfermidades, propondo uma relação direta entre a enfermidade e o agente causador.

            No início do século XX as escolas médicas nos Estados Unidos e no Canadá passaram por uma avaliação, que implicou na elaboração do Relatório Flexner que teve um grande impacto, ocasionando o fechamento de quase dois terços das escolas médicas da época. Este propunha medidas rígidas com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços médicos (Paim & Almeida Filho, 1998; Silva Jr., 1998).

            Segundo Mendes (1995), seguindo o paradigma da corrente bacteriologista, a saúde pública brasileira se fortaleceu a partir da criação do Instituto Soroterápico Federal, em 1900, com o intuito de fabricar vacinas e soros. Segundo este autor, apesar de o governo tentar manter a força de trabalho saudável e os insumos livres de contaminação, ainda responsabilizava a população pelos problemas de saúde, exigindo o cumprimento de hábitos de higiene.

            Rosen (1994) sugere que a partir de 1930, com o agravamento das condições de vida nas cidades, o crescimento dos movimentos sociais proletários passa a influenciar o surgimento de formas novas de assistência à saúde da população. Começam a ter lugar campanhas de vacinação em massa e campanhas sanitárias de controle de epidemias, assim como principiaram as prestações de serviços básicos de saúde em centros de saúde em bairros da periferia.

            Com o passar do tempo, tais medidas já não estavam atendendo as necessidades da população, sendo que, nos anos 1960, a classe trabalhadora já iniciava uma luta por melhores condições de saúde. Por volta de 1970, o país passa por diversas mudanças políticas, sociais e econômicas, as quais influenciaram de maneira significativa as políticas de saúde da época. Um cenário de migrações internas e desordenadas, crescimento populacional e expansão dos grandes centros urbanos, aliados a elevação de juros advindas da dívida externa alta do país agravam o quadro econômico com a alta da inflação e recessão.

            No intervalo supracitado, sugere Rosen (1994), tem lugar o Movimento Sanitário, consolidado em meados de 1960. Este esteve formado, basicamente, por intelectuais progressistas e movimentos populares que criticavam o modelo de atenção à saúde em vigor na época, clamando por uma atenção a saúde gratuita e acessível a toda a população, não somente a classe trabalhadora. Segundo Dâmaso (1995), este Movimento procurava, por meio de dispositivo legal e administrativo, enfatizar o vínculo entre saúde, doença e sociedade. Em outro âmbito, buscava-se também ampliar a consciência da população relativamente ao direito à saúde, assim como fortalecer o serviço público de qualidade, acessível a todos e também ampliar a consciência da população para o aspecto da necessidade de higiene pública.

            Segundo Mendes (1995, p.2), o modelo assistencial da época privilegiava “a prática médica curativa, individual e assistencialista em detrimento da saúde pública”, sendo “orientada em termos de lucratividade do setor saúde propiciando a capitalização da medicina”. Este modelo se constituiu altamente elitista, privilegiando o produtor privado dos serviços de saúde. E, como o Brasil vivia um momento social marcado por desigualdades no acesso aos bens e serviços, não atendia às demandas sociais, principalmente das classes menos privilegiadas e de zonas rurais.

            Neste contexto, sendo a prática médica vigente curativa, não era capaz de mudar os índices de morbi-mortalidade da população, denunciando então a falência deste modelo assistencial. Além disso, havia ausência de critérios no intercâmbio entre o Estado para com os serviços privados disponibilizados, gerando insatisfação evidente de usuários, profissionais de saúde e prestadores desses serviços. Portanto, demandaram-se propostas novas de mudança na assistência à saúde no Brasil.

As fraudes, o desperdício de recursos, os índices baixos de qualidade nos atendimentos tornaram urgentes a reformulação da forma assistencial vigente. Nesta direção, em 1979 o Ministério da Saúde e Previdência Social cria o PREVSAÚDE, um plano assistencial que padronizava os procedimentos de saúde, a forma de assistência, a hierarquização de serviços e profissionais, reduzindo e propondo um controle na atuação do setor privado e permitindo a participação comunitária nas decisões em medidas de priorização de ações em saúde.

Essa nova ordem na assistência à saúde estimulou, em 1981, a criação do CONASP (Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária) e o Plano de Reorientação da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social, objetivando uma melhoria da qualidade da assistência, de um atendimento mais humanizado e mais acessível à população em todos os níveis. Este Conselho priorizou a assistência básica à saúde, o atendimento ambulatorial, a utilização da capacidade ociosa do setor público, reduzindo ao mínimo a compra de serviços privados e a descentralização da rede assistencial e unificação de procedimentos e critérios.

A partir de 1983, ainda seguindo o planejamento do CONASP, foram implantados o Programa de Racionalização de Contas Hospitalares, com a introdução da Autorização de Internação Hospitalar (AIH), e o Programa de Ações Integradas de Saúde (AIS), que passaram a nortear a organização das ações em saúde da população de uma forma mais estruturada e articulada. Esta ação objetivou o aperfeiçoamento do sistema por meio de melhoria assistencial, valorização do profissional de saúde, oferecendo remuneração e condições de trabalho melhores, contratação de equipes multidisciplinares de profissionais como assistentes sociais, psicólogos terapeutas ocupacionais, nutricionistas, dentre outros.

            A VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, teve como prioridade a discussão das bases do projeto de reforma sanitária brasileira por intermédio da ampliação da diversidade de profissionais de saúde e a instituição de um Sistema Único de Saúde de forma a atender ao princípio da saúde como direito à cidadania e dever do Estado. Segundo Carvalho (1995), esta conferência foi um fato inédito na história das políticas de saúde, uma vez que a sociedade civil nunca havia sido convocada a debater sobre as políticas de governo relativas à saúde. Talvez por isso tenha havido uma participação baixa desses personagens nas discussões, que concentraram quase que exclusivamente técnicos governamentais e gestores de saúde.

            Luz (1994) observa que as grandes diferenças em relação às concepções discutidas quanto às Conferências anteriores foi que, pela primeira vez, a saúde deixou de ser concebida como um estado puramente biológico de ausência de patologias e passou a ser percebida como um estado advindo de um conjunto de condições bio-psico-sociais, superando a concepção medicalizante vigente. A descentralização dos serviços de saúde implicava na transferência de responsabilidades para Estados e Municípios, considerando também os clamores e avaliação da população, evitando-se a centralização das decisões, o que, confiava-se, agilizaria os processos e procedimentos em saúde.

            Em 1987 implementou-se o SUDS (Sistema Único e Descentralizado de Saúde), uma forma de aperfeiçoamento do Programa de Ações Integradas de Saúde, e em 1988 foi aprovado, na nova Constituição brasileira, o Sistema Único de Saúde (SUS), constituindo-se em uma proposta de regulamentação dos serviços de assistência à saúde da população. Este sistema está atualmente em vigor no país.

            O SUS tem como princípios o respeito aos direitos humanos e à cidadania e uma base organizada de dados que norteia e agiliza as ações, priorizando o atendimento integral e as atividades preventivas. O objetivo maior é tornar o acesso da população aos serviços de saúde mais ágil e organizado, unificado em todo o território nacional, sendo, principalmente, funcional. Seus princípios doutrinários filosóficos são a universalidade, a integralidade e a eqüidade. O setor privado atua como assistência complementar, permitindo o acesso da população a serviços especializados ainda não existentes na rede de saúde pública.

            Portanto, as iniciativas anteriormente mencionadas constituem hoje a saúde pública no Brasil, mesmo que ainda longe de atender a toda complexidade e demanda da população. Por exemplo, Goulart e Carvalho (1998) opinam que a descentralização do sistema ainda precisa ser mais profunda, reforçando os mecanismos que regulam os repasses de recursos, que ainda constituem meios para manter o processo decisório centralizado, impondo a padronização das alternativas de intervenção. Estes autores defendem que seria fundamental que o Ministério da Saúde atribuísse maior importância à avaliação de resultados e fornece medidas compensatórias aos sistemas estaduais e municipais com base em indicadores de saúde e qualidade de atenção.

Em resumo, o setor saúde é um sistema mutante, em construção constante que acompanha as mudanças sociais e, como tal, necessita de avaliações e atualizações de acordo com as demandas sociais, políticas econômicas e tecnológicas. Estas avaliações precisam envolver todos os implicados, dentre eles os médicos e demais profissionais de saúde, atores importantes desse processo. A multi-determinação das condições de saúde exige, como contra-partida, uma ação multisetorial e o compromisso dos governantes com o objetivo de garantir saúde à população. O enfrentamento dos desafios contemporâneos está na construção de alternativas para o amanhã, que envolvam o compromisso e a responsabilidade de governos para com a sociedade, assim como o respeito às suas necessidades e à diversidade. A seguir, procura-se considerar a saúde e o contexto de trabalho de profissionais desta área, particularmente os médicos.

 

 A Saúde de Profissionais da Saúde como Objeto de Estudo

 

A saúde e a doença estão intimamente relacionadas com as condições em que as pessoas vivem e produzem. Categorias laborais, grupos e classes sociais, portanto, não adoecem e morrem a partir de causas idênticas, pois não vivem e trabalham em condições idênticas. Como previsto na Lei 8080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, esta tem como fatores determinantes e condicionantes, dentre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso a bens e serviços essenciais (Diário Oficial da União, 1990).

A definição clássica de saúde, apresentada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é de que saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não podendo ser compreendida apenas como a ausência de enfermidade (OMS, 1960). Trata-se de uma definição que dá um conceito positivo de saúde, considerando-a um estado suscetível a graduações, no sentido de admitir a possibilidade de se ter mais ou menos saúde, sem necessariamente, estar doente.

Esta definição sugere que tanto o bem-estar físico e mental como o social exigem, para sua obtenção e/ou manutenção, uma atuação de diversos setores da sociedade organizada. Por exemplo, inclui, além de atividades no campo da saúde, aquelas de políticas públicas em âmbito educacional, seguridade social, promoção de emprego e renda. Estas, geralmente, são efetuadas sob o controle e responsabilidade do Estado. Portanto, torna-se relevante estudar a saúde de profissionais envolvidos com sua manutenção, especialmente quando se parte de uma concepção de saúde não limitada à dimensão físico-orgânica, passando a incluir outros aspectos, como o contexto sociocultural. Neste sentido, reconhece-se nas pessoas envolvidas, além de aspectos biológicos, a interdependência entre sua subjetividade e sua dinâmica com o ambiente social e econômico em que vivem e trabalham. Um ambiente em que é evidente a precariedade de recursos, levando tais profissionais a exercerem suas atribuições em contexto bem diferente do ideal postulado pelo sistema vigente de assistência à saúde.

            No presente estudo, a preocupação com profissionais de saúde fundamenta-se na necessidade de produzir conhecimentos que possam servir como base para a implementação de políticas que viabilizem uma melhoria nas suas condições de trabalho e, conseqüentemente, na promoção de saúde de qualidade para a população. Segundo Vasconcelos (1995), a realização de estudos avaliativos em saúde é extremamente útil, possibilitando o aprimoramento da prestação dos serviços, no sentido de atender tanto às expectativas dos usuários e prestadores de serviços como fornecer informações relevantes que fundamentem o planejamento de decisões a serem tomadas em relação à melhoria da gestão dos serviços de saúde.

            O interesse em discutir o bem-estar dos médicos, por esta via, deve-se ao fato de que, atualmente, a qualidade dos serviços de saúde ofertados à população tem sido tema de discussões cotidianas travadas não somente por profissionais de saúde de todo o país, mas também pelos próprios usuários dos serviços e gestores de uma maneira geral. Nota-se assim uma tendência no Brasil de busca da qualidade dos serviços públicos de saúde. À medida que os recursos para o setor tornam-se cada vez mais escassos e, por outro lado, as desigualdades sociais aumentam, intensificam-se as necessidades de cuidado e atenção, tornando-se um verdadeiro desafio produzir saúde com qualidade (Gil, Silva, Campos & Baduy, 2001).

            Sabe-se que a qualidade exige uma nova mentalidade, tanto de usuários como de instituições de saúde, no que diz respeito aos direitos da pessoa humana à autonomia, ao atendimento de qualidade e à saúde. Neste contexto, uma avaliação do bem-estar de profissionais envolvidos no processo torna-se importante quando se considera que a melhoria real no atendimento à saúde passa, necessariamente, pelo atendimento das necessidades de melhoria das condições laborais de seus profissionais.

            Apesar de haver consenso quanto à necessidade de se fazer avaliações de forma a se produzir serviços de saúde com mais qualidade, estas ainda têm sido um desafio para os pesquisadores. Além das dificuldades técnico-metodológicas (por exemplo, falta de critérios bem definidos, falta ou escassez de recursos financeiros, falta de capacitação profissional) e político-institucional (por exemplo, descaso ante às dificuldades organizacionais, caráter autoritário dos estudos, ênfase nas diferenças individuais), há ainda a resistência dos próprios profissionais para com a mudança nas suas práticas atuais.

            A Psicologia Social pode contribuir com a temática na medida em que aprofunda o olhar na dimensão subjetiva relacionada com as práticas de saúde e as vivências dos trabalhadores do setor, atualizando constantemente a relação entre a saúde, as condições de vida e trabalho, dentre outros aspectos próprios do contexto social em que tais práticas se desenvolvem. Esta área tem dado ênfase na busca de significados presentes na cultura para explicar diversos fenômenos da natureza humana (Bruner, 1997; Fiske, 1992). Segundo Bruner (1997), os significados são componentes mediadores da relação do indivíduo com o seu mundo. Desta forma, afirma este autor, uma psicologia culturalmente sensível é e deve ser baseada não apenas no que as pessoas realmente fazem, mas no que elas dizem fazer e no que dizem que as levou a fazer o que fizeram. Diz igualmente respeito ao que as pessoas dizem que os outros fizeram e por quê. E, acima de tudo, refere-se ao que as pessoas dizem serem os seus mundos.

Dizer e fazer se constituem, portanto, nos significados construídos pelo indivíduo e são causas de suas ações. Deste modo, conhecer os significados que profissionais de saúde atribuem ao seu trabalho poderá contribuir para a construção de uma fundamentação científica para a escolha de estratégias de mudanças com o objetivo de melhorar as condições deste, de forma a que seja percebido pelo trabalhador como adequado ao exercício profissional. No caso de médicos e outros profissionais de saúde, torna-se imprescindível sua interação positiva com o seu ambiente ocupacional, de forma que esta seja uma experiência gratificante e realizadora. Neste aspecto, o ambiente e as condições de realização do serviço desempenham um importante papel na determinação da qualidade do relacionamento da pessoa com o seu trabalho, o que vai implicar diretamente no seu bem-estar.

Segundo Maslach e Leiter (1999), são a estrutura e o funcionamento do local de trabalho que tendem a determinar a maneira como as pessoas realizam suas atividades laborais. Se não há reconhecimento humano da atividade, o risco de desgaste do profissional aumenta, acarretando comprometimento tanto do trabalho quanto da saúde mental do trabalhador. Portanto, o trabalho é fundamental para o desenvolvimento psicológico, biológico e social do ser humano; representa uma via importante de relação e comunicação com a sociedade em que vive.

Presume-se haver uma relação estreita entre o ambiente laboral e o estado de saúde, como descreve Soriano (1983): “dize-me em que trabalhas e te direi de que adoecerás” (p. 45). Objetivamente, os riscos imediatos do trabalho são, geralmente, os acidentes e as enfermidades a que estão expostos os trabalhadores, devido ao ambiente insalubre, às características de materiais e instrumentos que se utilizam, assim como aos diversos fatores “ambientais”, como condições de temperatura, ventilação, ruído, contato com agentes químicos ou bacteriológicos (Forastieri & cols, 1983). No entanto, outros fatores de natureza mais subjetiva, porém não menos danosos a saúde do trabalhador, também têm lugar no contexto laboral, tendendo a desencadear ou predispor aos primeiros; entres estes podem ser citados a insatisfação, o desconforto psicológico e o estresse (Borges & cols., 2005).

            Em resumo, parece evidente que um passo fundamental na atenção e prevenção da saúde é o reconhecimento da possibilidade da existência de enfermidades frente à declarada presença de um sofrimento, principalmente entre aqueles que são cuidadores por profissão. É claro que somente a identificação de tais fatores por si só não alivia o padecer, mas trás a possibilidade da tomada de consciência dos riscos a que estão expostos profissionais da área e contribuem para refletir sobre medidas preventivas ou curativas para os mesmos. A seguir apresenta-se um panorama sobre o trabalho dos médicos e as transformações recentes na sua prática laboral.

 

O Sentido do Trabalho e a Profissão Médica

 

Inicialmente, deve-se compreender o trabalho como uma atividade humana essencial; é um processo de interação entre o homem e a natureza, em que tal homem, com sua ação intencional, mede, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ao atuar por meio desse movimento, ele busca modificá-la e, ao fazê-lo, modifica sua própria natureza. Assim, é a intencionalidade o que diferencia o trabalho humano do realizado por outros animais. A existência de uma consciência e uma liberdade é o que o faz ímpar, não sendo movido apenas pela sobrevivência que orienta a maioria das espécies (Garcia, 1984).

Garcia (1984) apresenta um modelo de trabalho humano constituído de duas dimensões: uma abstrata ou quantitativa, em que há dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico. Neste caso, o trabalho humano seria comparado a uma mercadoria; a outra dimensão é denominada como concreta ou qualitativa, onde a força de trabalho humano, sob forma adequada, seria destinada a um fim, e essa qualidade de trabalho concreto produziria valor de uso. O trabalho útil, criador de valor de uso, constitui um estímulo que desenvolve as capacidades físicas e mentais do ser humano, passando a ser entendido como fonte de satisfação e prazer. Assim, tais dimensões do trabalho humano devem ser pensadas de forma inseparável.

Sob o ponto de vista do capitalismo, o trabalho abstrato seria apropriado pelo capitalista que remuneraria o trabalhador, procurando que este pudesse recuperar a energia física consumida em sua execução. Cabe aqui a comparação com uma mercadoria. O trabalho, neste sentido, torna-se um objeto de troca, sendo que o sistema de produção capitalista retira o sentido do trabalho para o trabalhador, gerando alienação do trabalho (Garcia, 1984). Portanto, alienação é a dissociação entre atividade e sujeito, imposta pelo modo de produção capitalista. O produtor não mais se identifica no produto do seu trabalho, esse se transforma em objeto. É coisificado. O trabalhador passa a identificar sua atividade como estranha, não pertencente a ele.

A prática de trabalho é a transformação de um objeto em outro mediante gasto de trabalho humano, com a utilização de determinados meios e instrumentos. Portanto,

possui três componentes básicos: objeto, meios ou instrumentos de trabalho e atividade ou trabalho propriamente dito (Paim, 1992; Schraiber, 1992). O objeto do trabalho médico constitui-se no corpo humano em sua composição anatomofisiopsicológica. Este corpo, porém, não é simplesmente um amontoado de células, de tecidos ou de reações bioquímicas; trata-se de um corpo humano que, vivendo em sociedade, é investido de valor.

Para a efetivação do seu trabalho, há que existir um conjunto de meios que o trabalhador interpõe diretamente entre ele e seu objeto de trabalho, para a realização do trabalho propriamente dito. No caso da Medicina, tais meios podem ser tanto instrumentos que produzirão a transformação desejada (por exemplo, bisturi, pinças, agulhas, medicamentos) como outros mais subjetivos (por exemplo, o conhecimento das patologias, o raciocínio clínico, a identificação dos exames). Há ainda os que não participam diretamente do processo, como o local de trabalho e a dinâmica interpessoal entre os colaboradores, mas que são fundamentais ao exercício profissional (Paim, 1992; Schraiber, 1992). Portanto, propriamente dito, o trabalho se caracteriza como energia humana (física e emocional) empregada no processo de produção. No caso do trabalho médico, o dispêndio físico e intelectual coloca tal profissional na categoria de trabalhador intelectual, o que pode implicar em uma percepção e consciência de responsabilidade que predispõe ao estresse.

Ao iniciar uma reflexão acerca do trabalho médico, torna-se necessário conhecer um pouco acerca das transformações contextuais por que vem passando esta profissão (mas, as mudanças não se restringem a esta profissão). Alguns autores referem mudanças significativas que ocorreram na organização do trabalho nos últimos anos em conseqüência do desenvolvimento científico-tecnológico acentuado. Desta forma, a organização do trabalho humano passou a vivenciar um modelo de controle e regulação denominado Organização Científica do Trabalho (OCT), que adotou uma metodologia científica em substituição aos métodos empíricos de regulação do trabalho (Schraiber, 1991; Schraiber & cols., 1994).

Este período é identificado por diversos autores como o de consolidação e desenvolvimento de uma forma particular de organizar o trabalho e, especificamente, o trabalho médico. Tal forma de organização marca uma etapa do desenvolvimento do capitalismo, impondo um padrão novo de organização do trabalho caracterizado pela produção em massa e pelo consumo. Este novo modelo de organização do trabalho impôs ao trabalhador um sistema rigoroso de controle e avaliação de desempenho, baseado em padrões de produtividade individual e coletiva, nem sempre levando em conta as diferenças individuais e peculiaridades de cada categoria profissional. Suas características principais são pautadas (1) na concentração de recursos de uma mesma organização; (2) na separação entre trabalho intelectual (trabalho daqueles que planejam) e trabalho físico (trabalho daqueles que executam), sendo estes o controle e a fiscalização das atividades realizadas pelos planejadores; (3) no estímulo à divisão de saberes e práticas nas organizações, estimulando a especialização; (4) na divisão da organização em setores com objetivos comuns e com comando único; e (5) na adequação do trabalhador à tarefa executada, garantindo maior eficiência e produtividade (ver Schraiber, 1991; Schraiber & cols., 1994).

Esta nova forma de organização do trabalho implica tanto na prática como no desenvolvimento da Medicina, que passa a não mais adotar o modelo artesanal de controle individualizado da própria força de trabalho, assumindo este novo modelo de racionalizar o trabalho. Neste sentido, adotam-se as seguintes orientações como paradigmas (Schraiber, 1993; Mendes, 1986): o mecanicismo (o corpo humano é visto como semelhante a uma máquina); o biologicismo (reduz o homem a seus componentes biológicos); o individualismo (focaliza os aspectos bioquímicos e fisiológicos, em detrimento daqueles psicológicos, sociais e culturais); a especialização (promove a fragmentação de saberes e práticas dentro da Medicina); a exclusão de práticas alternativas (limita a prática terapêutica a ações legalmente instituídas); a concentração de força de trabalho em saúde (promove a concentração de força de trabalho e equipamentos em um mesmo ambiente, no caso, o hospital); a tecnificação do ato médico (utiliza tecnologias caras e sofisticadas para realização de suas ações); e, finalmente, a ênfase na medicina curativa (foca a atenção na doença e não na saúde).

Sendo possível aplicar a lógica capitalista ao modelo de sistema de saúde, tornou-se também possível gerenciar aqueles que a produzem, no caso, os médicos. Particularmente, o hospital passa ser um espaço de possível implementação desse novo modelo de organização do trabalho médico (Conselho Federal de Medicina, 1998; Schraiber, 1993; Mendes, 1986). Esta lógica nova do trabalho médico e o seu conseqüente re-ordenamento possibilitaram uma predominância da dimensão científico-tecnológica da Medicina, que passou a orientar os processos de trabalho atuais, impondo um padrão novo de formação acadêmica, principalmente valorizando a tecnologia e a especialização como mecanismos de aquisição de conhecimentos científicos e integração ao mercado de trabalho (Mendes, 1986; Novaes, 1990).

Estas transformações na organização do trabalho no Brasil passam a impactar de forma significativa a partir da segunda metade do século XX, quando da instalação de empresas estadunidenses que implantam e difundem este modelo de organização do trabalho. À época também se consolidou o sistema previdenciário brasileiro, garantindo assistência médica e farmacêutica aos trabalhadores formalmente regulados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O acesso dos trabalhadores a benefícios sociais, dentre os quais a assistência médica, diminuiu a força de luta dos trabalhadores por melhorias de condições de trabalho (Mendes, 1986; Novaes, 1990). Por volta da década de 1970, devido a perdas significativas de produtividade na economia, principalmente nos Estados Unidos, intensificam-se as lutas trabalhistas por melhores remunerações. Em resposta a essas demandas, elevaram-se os preços de produtos e serviços, gerando uma crescente onda inflacionária (Druck, 1999; Schraiber, Medici & Gonçalves, 1994).

O investimento em novas tecnologias que gerassem aumento da produtividade propiciou a evolução da robótica, da informática e das comunicações, produzindo mudanças profundas e favorecendo o desemprego. A amortização da nova crise no trabalho aparece por meio de benefícios ofertados pelo Estado de bem-estar social, materializados no auxílio-desemprego ou em programas de auxílio social. Novamente o capitalismo mantém o seu padrão de gestão e organização do trabalho e da sociedade, mediante o qual se consolidou como uma forma de proteção social (Druck, 1999).

Por essa época também as empresas japonesas passaram a propor e difundir internacionalmente padrões de organização do trabalho baseados na qualidade. Desta forma, a qualidade e a diferenciação dos produtos tornaram-se fundamentais como base para a competitividade. A utilização de tecnologias modernas, robótica e informática pelo novo modelo de organização do trabalho impactou mais uma vez na sociedade laboral. Em razão dessas transformações e pela necessidade de investimentos em modernização tecnológica, esgota-se a capacidade de investimentos sociais do Estado, impossibilitando suas ações de amortização da crise social, gerada por formas novas de organização do trabalho, tecnologias e competição internacional. Como conseqüência, um aumento do desemprego foi inevitável, o que levou os trabalhadores a deslocarem suas reivindicações de aumentos salariais para a manutenção de emprego (Druck, 1999; Schraiber et al, 1994). Segundo Druck (1999), nos anos 1990, em conseqüência da crise de anos anteriores e por conta do enfraquecimento das reivindicações dos trabalhadores, o Estado minimiza suas ações de implementação de políticas sociais, o que agrava o desemprego e a exclusão social de trabalhadores assalariados, que só conseguem se incorporar ao sistema produtivo por meio de formas precárias de contratação.

A forma nova de organização do trabalho, baseada no modelo japonês, gerou um sistema muito hierarquizado e diferenciado entre empresas de portes diferentes, da seguinte maneira: no caso das grandes empresas, estas resguardaram maiores possibilidades de estabilidade no emprego, investiram no trabalho qualificado, possuíam remuneração fixa e/ou variável em conformidade com o aumento da produção. A organização do trabalho foi baseada na cultura da qualidade total, o que pressupôs a participação dos trabalhadores, envolvidos no processo de busca por produtividade e redução de custos. No caso de pequenas e médias empresas, estas tenderam a formar uma rede de subcontratação, onde se encontravam todos os tipos de trabalho. Em geral, eram instáveis e contratavam a mão de obra dos seus trabalhadores de maneira precária. Estes tendiam a possuir baixa qualificação profissional e a se submeterem a condições precárias de trabalho, salários baixos e controle rigoroso para alcançar os padrões de qualidade e produtividade exigidos (Druck, 1999).

Como uma das conseqüências para a Medicina, estas transformações fizeram com que seus profissionais passassem a sofrer com a redução da remuneração, ampliação das jornadas de trabalho, contratações precárias, controle e fiscalização de suas atividades, perda da autonomia profissional, entre outras transformações, que vêm reduzindo o prestígio da categoria perante a sociedade. Em relação à fragmentação do conhecimento através da exigência mercadológica por especializações, tem levado a efeitos nefastos, dado que a especialização elevada da Medicina acarreta uso de tecnologias novas, o que por sua vez onera e inviabiliza os custos para o consumidor final (o cliente), afastando-o dos médicos. Por outro lado, o cliente pode passar a não mais aceitar procedimentos mais básicos, como a anamnese e a ausculta, por pura insegurança ou desconfiança deste processo. Além disso, a corrida por especializações tende a afastar os jovens médicos de áreas básicas e levar a perda da credibilidade social destes profissionais (Goulart & Carvalho, 1998).

O uso abusivo de recursos tecnológicos tende a provocar uma dependência do profissional com relação a tais recursos, levando assim a uma gradativa perda da capacidade de raciocínio clínico. Os exames complementares tornaram-se instrumentos de proteção técnica e legal para uma boa parcela de profissionais médicos (Goulart & Carvalho, 1998). Portanto, especializar-se passou a ser a solução, não somente para se preservar a autonomia técnica, mas, principalmente, para a manutenção da credibilidade e prestígio sociais. Compreender profundamente apenas uma parte do conhecimento científico médico acaba sendo, para o profissional da área, uma atitude mais segura, uma prática mais adequada à realidade capitalista, num mundo cada vez mais globalizado, individualizado, competitivo e legalista.

É importante reconhecer que a forma como se organiza o trabalho médico na sociedade impõe ao ensino médico suas próprias leis e funcionamento. Tal ensino acaba reforçando esta situação até certo ponto, pois a educação médica tem certa autonomia, que leva à geração de contradições com as demandas surgidas na prática médica. Se a prática médica impõe a especialização como forma de inserção no mercado de trabalho, isso influencia a formação escolar e o currículo da escola médica, que, em geral, se adaptam a tal situação. Entretanto, dentro dos limites impostos pela realidade, é possível haver criatividade e inovação. A propósito, deve-se reconhecer uma autonomia relativa da escola médica em propor modelos novos de exercício profissional, atuando de maneira conflitante e dialética e, assim, transformadora do real.

Em resumo, ao se adotar o entendimento materialista de determinação da estrutura econômica sobre os demais componentes da sociedade, apontam-se as transformações ocorridas na sociedade capitalista e, como conseqüência destas, as aquelas observadas no trabalho médico. De um modelo artesanal, mais autônomo, este se modifica para um modelo onde predomina a perda da autonomia com o assalariamento e a dependência de tecnologias. Estas transformações na organização do trabalho médico e as novas formas de inserção do médico no mercado de trabalho apontam dificuldades que a categoria enfrenta na atualidade (Carneiro & Gouveia, 2004). Este aspecto é tratado melhor no tópico a seguir.

 

 

O Médico e o seu Contexto de Trabalho

 

            A visão da Medicina e do papel do médico que predomina nas sociedades é construída dentro de realidades que se modificam de forma dinâmica, à medida que se ajustam às transformações nos contextos sociais. Segundo Machado (1997), a estrutura econômica determina o lugar e a forma de articulação da Medicina e dos médicos como categoria profissional na estrutura social. Portanto, pensar o trabalho do médico é pensar também as circunstâncias em que as relações entre o profissional e seu trabalho se estabelecem com as diferentes estruturas contextuais.

A medicina é uma ciência que se propõe, dentre outras coisas, à manutenção e restauração da saúde.  Em um sentido mais amplo, busca soluções para a prevenção e cura das enfermidades (físicas e psicológicas) que acometem os seres humanos. É a área de atuação do profissional formado em uma Faculdade de Medicina (Who, 2001).

Para uma melhor compreensão dessa ciência, segue um breve panorama histórico. A palavra “ medicina”, deriva do latim ars medicina, significa “a arte da cura”, e refere-se a uma série de práticas, abordagens e conhecimentos, técnicas e exercícios que, combinados, tendem a possibilitar o restabelecimento de um organismo, precvenir doenças e manter o Bem-estar (Who, 2003). Segundo informações da Organização Mundial de Saúde (Who, 2003), a história da medicina data de 460 a 377 a.C. com Hipócrates, que favoreceu essa ciência com um legado ético, moral e científico, sobre detalhamento das doenças, utilização de plantas medicinais, chás, infusões, clisters, dentre outras práticas válidas até hoje. 

No primeiro século de era cristã, Cláudio Galeno, outro médico grego, deu contribuições substanciais (baseado em violações de animais) para o desenvolvimento da medicina. Já na Idade Média, a igreja passa a ter um papel importante principalmente nas doenças contagiosas.  Foi somente em 1965 que Louiz Pasteur deixou a sua grande contribuição sobre as infecções e uma forma de prevení-las através do processo de pasteurização. Em 1928, Alexander Fleming  descobre a penicilina e a medicina entra numa nova era em termos de prevenção e cura de doenças.

No Brasil, uma das instituições mais antigas foi a Academia Nacional de Medicina, fundada em 1829 pelo Dr. Souza Meireles sob o nome de Sociedade de Medicina. O ensino oficial da Medicina teve início em novembro de 1808, quando por  decreto de D. João VI, foi criada a Escola Anatômico-Cirúrgica e Médica na cidade de Salvador, na Bahia, hoje faculdade de medicina da UFBA e que posteriormente foi precursora da Faculdade Nacional de Medicina. No Brasil a profissão médica é regulamentada em Resolução expedida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

Os médicos, historicamente, sempre possuíram respeitabilidade e grande prestígio social, decorrentes da relação direta com os pacientes e, provavelmente, em razão da forma de trabalho individualizada e autônoma; um vínculo médico-paciente baseado na confiança, no respeito e no sigilo profissional. A própria assistência à saúde foi outrora um ofício de artesão, que progressivamente foi se transformando em um sistema de produção capitalista, em que o trabalho médico passou a ser uma mercadoria socialmente valorizada. Os médicos passaram a se submeter às regras dessa nova maneira de exercer seu ofício, desenvolvendo suas atividades em serviços públicos e privados. Conseqüentemente, estes foram submetidos às regras impostas aos demais trabalhadores de qualquer empresa capitalista, como instabilidade no emprego (quando tinha oportunidade de ter alguma), ritmo intenso de trabalho, jornadas de trabalho prolongadas, assalariamento, somadas às particularidades do trabalho médico, como aliviar a dor e o sofrimento, e ter a morte como situação rotineira (Machado, 1997; Nics, 1998; Pitta, 1990).

Em pesquisa pioneira realizada no Brasil, na cidade de São Paulo, Donnangelo (1999) já apontava o assalariamento dos médicos, ainda que associado com outras formas de inserção no mercado de trabalho. Machado (1996), em estudo sobre o perfil dos médicos no Brasil, observou uma realidade preocupante acerca desses profissionais: 80,4% indicam se sentir desgastados em suas atividades, acumulando vários empregos, com carga horária extensa, chegando a cumprirem de 12 a 14 horas diárias. Constatou ainda que tais profissionais viviam então um processo de assalariamento e perda da autonomia no trabalho, sendo que mais da metade desses médicos percebiam o futuro da profissão com pessimismo e incerteza. Outros estudos procuraram também retratar as características principais destes profissionais e de seu mercado de trabalho, como (Machado, 1997; Ministério da Saúde, 1998):

· O mercado de trabalho médico conta com cerca de 350 mil postos de trabalho, em setores público e privado, para um contingente, em meados da década de 1990, de 183.052 médicos em todo o país. Observou-se que 74,7% destes profissionais também exercem atividades em consultórios particulares, o que implica num mercado real de pelo menos 500 mil postos de trabalho. Isso equivale a 2,7 empregos ou atividades por médico.

· Em todas as regiões brasileiras a atividade profissional era predominantemente exercida em instituições hospitalares, tanto no setor público como no privado.

· No caso dos consultórios particulares, 79,1% dos médicos trabalhavam com convênios e/ou cooperativas de saúde, sendo que 16,6% deles exerciam esta atividade dentro de estabelecimentos de saúde.

· 65,9% dos médicos atuavam em capitais brasileiras, principalmente nas mais desenvolvidas social e economicamente. Esta concentração contribuiu para uma relação de 3,28 médicos por mil habitantes nas capitais, mais de seis vezes a observada nas cidades do interior (0,53 médico por mil habitantes).

· Apenas dez especialidades médicas, das 65 reconhecidas à época, sobressaiam-se no mercado de serviços médicos, as quais abrangiam 62,1% do total dos médicos brasileiros.

· Aproximadamente metade destes profissionais, isto é, 48,9%, trabalhavam em regime de plantão, com maior freqüência de plantões de 12 e/ou de 24 horas.

À época existem evidências também acerca do aumento de especialização, redução da remuneração, multiplicidade de vínculos empregatícios, participação crescente de mulheres na categoria médica, realização elevada de plantões entre as formas de trabalho e a informalização crescente das relações de trabalho. Estes resultados denotam que o mercado de trabalho dos médicos no Brasil tem reproduzido a tendência geral da economia contemporânea de exploração e flexibilização da contratação da força de trabalho (Machado, 2000).

Estudo mais recente demonstra dados ainda mais alarmantes (Carneiro & Gouveia, 2004). Neste estudo, cerca de 52% dos médicos exerciam atividades de plantonistas, modalidade de trabalho cansativa e desgastante, principalmente quando é desenvolvida em ambientes com carência de equipamentos e materiais adequados, pondo em risco a saúde daqueles a quem se pretende socorrer. Também a remuneração destes profissionais mais uma vez esteve aquém de suas expectativas. O estudo demonstrou que 72% deles possuíam renda mensal individual inferior a U$ 3.000,00 (três mil dólares), quando revelaram que estariam satisfeitos com uma renda mensal de U$ 4.000,00 (quatro mil dólares). Nota-se, pois, a distância salarial pretendida. Esta situação, aliada às outras condições de precariedade no exercício da profissão médica, compromete a satisfação com a vida destes profissionais. Isso potencialmente torna o seu trabalho, que deveria se constituir numa fonte de prazer, em uma fonte de desprazer, sentimentos de insignificância, inutilidade e impotência, estressores potencialmente devastadores para a saúde e o bem-estar subjetivo.

Machado (1997) observou que o número de profissionais médicos aumenta 3,8% mais que a população brasileira, que tem seu índice de crescimento em torno de 1,8% ao ano. Desta forma, um número relativamente grande de profissionais médicos ingressa no mercado de trabalho a cada ano, gerando alta competitividade pelo excesso de mão de obra, necessidade cada vez maior de qualificação, problemas de remuneração justa e diminuição do status e prestígio profissional, geradores de conflitos. Neste sentido, não é de estranhar que nas últimas décadas as condições de trabalho tenham se deteriorado, com uma insatisfação com a remuneração recebida como fruto do trabalho médico. Estes profissionais sentem-se cansados, desmotivados e apáticos diante da vida; a atividade médica tem deixado de ser uma fonte de desejo e prazer para tornar-se fonte de desgaste por conta da burocracia, das jornadas exaustivas de trabalho, das quantidades de consultas, atos e procedimentos terapêuticos exigidos (Carneiro & Gouveia, 2004; Machado, 1996).

Nas pesquisas de âmbito nacional realizadas em 1995 (Machado, 1996) e 2003 (Carneiro & Gouveia, 2004), procurando mapear as principais características dos médicos e seu contexto laboral, destacaram-se crescente participação do sexo feminino na categoria, concentração de profissionais nos centros urbanos, principalmente nas grandes cidades, ritmo intenso de trabalho, jornadas de trabalho prolongadas, predomínio das atividades de plantão, principalmente entre os médicos mais jovens, sobrecarga de trabalho e insatisfação com a profissão.

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo realizou um estudo sobre o mercado de trabalho médico na capital paulista. Na oportunidade, observou-se que uma proporção significativa de médicos possuía acúmulo de jornadas de trabalho, que chegavam a três ou mais atividades, tais como trabalho assalariado, prática autônoma em consultórios e trabalho em organizações hospitalares. No setor público, predominava a contratação de médicos de forma assalariada e, no setor privado, por prestação de serviços por meio de cooperativas ou empresas médicas. Esta forma de contratação foi considerada como uma tendência do mercado, principalmente em hospitais privados (CREMESP, 2002).

Em resumo, o dia-a-dia desgastante, muitas vezes sem descanso adequado, dormindo mal e alimentando-se mal, trabalhando muito e ganhando pouco, acaba contrastando com a necessidade de atender as representações sociais que se tem desta categoria profissional. Assim, o médico precisa ter um consultório bonito, usar roupas elegantes e ter um carro moderno para poder identificar-se como pertencente a uma elite social. Este quadro de referência preliminar aponta elementos necessários à compreensão de como as modificações recentes do trabalho médico impactam, não somente na qualidade de sua produção laboral, mas também trás implicações danosas a sua própria saúde, dentre essas o esgotamento laboral e o desconforto psicológico.

 

 

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Sobre os autores:

 


1.
Lucas Vieira de Lima Silva é Professor do  Curso  de  Educação Física  da  Universidade

    Regional do Cariri. E-mail: vieira11silva@hotmail.com;

2. José Genivaldo Parente é Graduado em Odontologia e Pós Graduado em Saúde Pública

    pela Universidade Estadual do Ceará. E-mail: oxentti@ig.com.br.